Desde seu lançamento em 2013, The Last of Us marcou o mundo dos games com uma proposta rara: contar uma história de sobrevivência que não apenas emociona, mas também confronta o jogador com dilemas morais que reverberam além da tela. Criado pela Naughty Dog e dirigido por Neil Druckmann e Bruce Straley, o título foi um divisor de águas não só na narrativa dos videogames, mas na maneira como entendemos a perda, a tomada de decisões difíceis e o instinto humano de continuar vivo, mesmo em um mundo desmoronado.

A palavra-chave aqui é profundidade. The Last of Us não simplifica os eventos nem oferece respostas fáceis. Ao contrário, ele obriga o jogador a refletir sobre cada escolha feita — e a lidar com as consequências, mesmo que sejam dolorosas. E isso vale tanto para o primeiro jogo quanto para a sequência, lançada em 2020, que aprofundou ainda mais essas questões.

A perda como ponto de partida, não de chegada

Logo nos primeiros minutos do jogo original, somos apresentados a uma das cenas mais devastadoras da história dos videogames: Joel perde sua filha, Sarah, de forma brutal e repentina. Essa perda inicial não é apenas um gatilho narrativo. Ela molda todo o arco do personagem — suas decisões, seu comportamento e, principalmente, sua visão de mundo.

De acordo com a GamesRadar, a escolha de começar a história com um trauma tão forte foi deliberada: “Os criadores queriam que o jogador sentisse o peso da dor antes mesmo de entender o mundo pós-apocalíptico ao redor”. (GamesRadar, 2023)

Essa dor é o que leva Joel a se tornar um homem endurecido, cético e disposto a tudo para sobreviver — até mesmo cometer atos moralmente questionáveis. E essa visão de mundo, baseada na perda, afeta diretamente sua relação com Ellie e com o próprio desfecho da trama.

As escolhas nem sempre são heroicas — e isso é real

Uma das lições mais desconfortáveis de The Last of Us é que nem todas as escolhas são heroicas. Pelo contrário, muitas são impulsivas, egoístas ou simplesmente fruto do desespero. Ao final do primeiro jogo, Joel opta por salvar Ellie, mesmo que isso signifique sacrificar a única chance conhecida de cura para a humanidade. A decisão não é nobre — é pessoal. É humana.

Segundo a Polygon, essa escolha gerou um dos debates mais complexos da última década na comunidade gamer: “Joel foi um monstro ou um pai que fez o que achava certo?”. (Polygon, 2020)

No entanto, é justamente essa ambiguidade moral que torna a história tão poderosa. Porque, no fundo, The Last of Us nos pergunta: você teria feito diferente?

Além disso, o segundo jogo coloca o jogador no controle de duas personagens com visões opostas de justiça e vingança — Ellie e Abby. O roteiro, ao nos obrigar a viver os dois lados de um mesmo conflito, nos força a entender que nem sempre há vilões absolutos ou heróis impecáveis. Tudo depende da perspectiva.

Sobrevivência: mais do que apenas continuar vivo

The Last of Us nos mostra que sobreviver não é só uma questão de escapar dos infectados ou encontrar comida. Trata-se de preservar algum tipo de humanidade em meio ao caos. Ao longo do jogo, vemos personagens que abriram mão de qualquer senso moral para sobreviver, tornando-se predadores ainda mais perigosos que os monstros criados pelo fungo Cordyceps.

Em entrevista à IGN, Neil Druckmann afirmou: “A história sempre foi sobre o que as pessoas são capazes de fazer umas às outras quando a civilização cai. O fungo é apenas o pano de fundo.” (IGN, 2020)

De fato, a infecção zumbi é o cenário, não o foco. Os maiores conflitos são humanos. E a sobrevivência, mais do que um ato físico, é uma batalha psicológica e emocional.

Joel, por exemplo, sobrevive apagando partes de si mesmo. Ellie, por outro lado, tenta encontrar sentido mesmo diante da violência. Já Abby, em sua jornada de vingança, nos mostra como a sobrevivência pode ser também uma reconstrução de identidade.

Violência com propósito: quando a brutalidade é narrativa

Outro aspecto importante é que The Last of Us não evita mostrar a violência — mas também não a glamoriza. A brutalidade está presente em cada facada, em cada grito, em cada expressão de dor. Contudo, essa violência não é gratuita. Ela tem função narrativa.

De acordo com a Eurogamer, a escolha estética de mostrar os impactos físicos da violência foi pensada para “gerar desconforto consciente no jogador” e reforçar o peso de cada decisão. (Eurogamer, 2020)

Esse desconforto é proposital. Ele nos tira da posição de espectador passivo e nos transforma em cúmplices — ou, ao menos, testemunhas — dos atos cometidos em nome do amor, da sobrevivência ou da vingança.

A carga emocional e o impacto cultural

O impacto de The Last of Us não se limitou aos games. A adaptação da HBO, estrelada por Pedro Pascal e Bella Ramsey, levou a história para milhões de pessoas que nunca haviam segurado um controle. E o resultado foi um fenômeno: mais de 30 milhões de espectadores acompanharam a primeira temporada, segundo dados da HBO e Variety (2023).

A série ampliou o debate, reforçando os dilemas morais da trama e atualizando a discussão sobre temas como empatia, trauma e o que significa amar alguém em tempos de colapso.

Além disso, o jogo original vendeu mais de 20 milhões de cópias até 2022, conforme divulgado pela própria Sony. E a sequência, The Last of Us Part II, superou 10 milhões de unidades vendidas em apenas dois anos — números que colocam a franquia entre as mais importantes da história dos games.

Conclusão: um espelho da condição humana

Mais do que um jogo ou uma série, The Last of Us é um retrato nu e cru da condição humana. Ele nos ensina que a perda pode moldar nosso caráter, que nossas escolhas raramente são simples e que sobreviver exige mais do que força física — exige coragem moral, empatia e, às vezes, sacrifício.

Em um mundo cada vez mais fragmentado por extremos, o universo criado por Druckmann e sua equipe continua relevante porque não oferece respostas prontas. Em vez disso, nos obriga a encarar o que há de mais frágil — e mais feroz — em nós mesmos.

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